CARTA QUE O APRESENTADOR FLÁVIO CAVALCANTI (1923-1986) ESCREVEU A SEU NETO
Pelo que você já me disse
com o seu sotaque de anjo, percebo que você me considera uma criança grandona e
desajeitada, e me acha, mesmo assim, seu melhor companheiro de brinquedos.
Pena que tenhamos tão pouco tempo para brincar, tão pouco porque só sei brincar
de passado, e você só sabe brincar de futuro. E ainda estarei brincando de
recordação quando você começar a brincar de esperança.
Mas antes que termine o nosso recreio juntos, antes que eu me torne apenas um
retrato na parede, uma referência do meu genro, ou quem sabe até uma lágrima de
minha filha, quero lhe dizer meu neto, que vale a pena.
Vale a pena crescer e estudar. Vale a pena conhecer pessoas, ter namoradas,
sofrer ingratidões, chorar algumas decepções. E, a despeito de tudo isso, ir
renovando todos os dias a sua fé e a bondade essencial da criatura humana, e o
seu deslumbramento diante da vida.
Vale a pena verificar que não há trabalho que não traga sua recompensa; que não
há livro que não traga ensinamentos; que os amigos têm mais para dar que os
inimigos para tirar; que se formos bons observadores, aprenderemos tanto com a
obra do sábio quanto com a vida do ignorante.
Vale a pena casar e ter filhos. Filhos, que nos escravizaram com o seu amor.
Vale a pena viver nesses assombrosos tempos modernos, em que milagres acontecem
ao virar de um botão; em que se pode telefonar da Terra para a Lua; lançar
sondas espaciais, máquinas pensantes à fronteira de outros mundos, e descobrir
na humildade que toda essa maravilha tecnológica não consegue, entretanto,
atrasar ou adiantar um segundo sequer a chegada da primavera.
Vale a pena, meu neto, mesmo quando você descobrir que tudo isso que estou
tentando ensinar é de pouca valia, porque a teoria não substitui a prática, e
cada um tem que aprender por si mesmo que o fogo queima, que o vinagre amarga,
que o espinho fere, e que o pessimismo não resolve rigorosamente nada.
Vale a pena, até mesmo, envelhecer como eu e ter um neto como você, que me devolveu a infância.
Vale a pena, ainda que eu parta cedo e a sua lembrança de mim se torne vaga.
Mas, quando os outros disserem coisas boas de seus avós, quero que você diga de
mim, simplesmente isso:
“Meu avô foi aquele que me disse que valia a pena. E não é que ele tinha razão?!”
- PS: Lembro da passagem do Flávio Cavalcanti na TV Bandeirantes, onde o Brasil inteiro parou para ver e concorrer em um sorteiro promovido pelo Guaraná Antarctica. Foi sorteado em pleno palco um avião bimotor. Sim, no meu caso, trocarei o substantivo masculino NETO por FILHO(A).
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