Nos meus tempos de
menino/adolescente que já se vão longe, o período da Quaresma era
vivido com mais religiosidade e com bem mais roupa. Explico melhor: da
quarta-feira de cinzas até o domingo de Páscoa, diariamente, havia cultos
religiosos na Igreja do Rosário, em Jaguaribe, com participação maciça da
comunidade. As imagens dos santos eram cobertas de roxo. Os
paramentos dos sacerdotes igualmente eram roxos e até os coroinhas usavam
uma tarja roxa para sinalizar, com o rigor que o período exigia, o luto a
que todos estávamos submetidos. O povo ficava mais triste e fazia
sacrifícios, como por exemplo, deixar de ir à praia e até adiar festas de
aniversário.
O domingo de Ramos era,
para mim, o rito mais bonito. De manhã, na missa das sete, rezada por
Frei Jorge, com a igreja superlotada, os assistentes empunhavam
galhos de cróton, folhas de palmeira, palmas de coqueiro ou ramos
de oliveiras e saíam pelas ruas afora, dando uma volta inteira no quarteirão
que circunda a Igreja.
Na quarta-feira de trevas, não
tinha aula e minha mãe dizia que era proibido até tomar banho. Na
quinta-feira santa o Bispo, na Catedral e os padres, nas paróquias,
lavavam os pés de alguns fiéis, numa cerimônia que se iniciou há mais de dois
mil anos – como todos sabem. Na sexta-feira da Paixão, nada na cidade
funcionava, a não ser os templos católicos. O comércio não abria e os
restaurantes (eram poucos por sinal) cerravam suas portas, tanto quanto
os postos de gasolina. Os cinemas exibiam a “Paixão de Cristo”, em
sessões contínuas, sempre arrancando lágrimas dos assistentes – mas ninguém
morria do coração. O jejum (salvo o almoço de bacalhau) e a abstinência eram
rigorosamente obedecidos e até as rádios só tocavam músicas clássicas ou
cânticos religiosos. A procissão do Senhor Morto era a maior da cidade e
arrastava multidões, chovesse ou fizesse sol, todos querendo chegar mais perto
do andor pra tocar nas chagas de Cristo.
O sábado era realmente o sábado
de aleluia, quando acontecia a tão aguardada malhação do Judas, à época e ainda
hoje, um dos eventos de maior participação popular de Jaguaribe. Na vila
dos motoristas, os moradores das poucas casas existentes começavam a preparar
o Judas ainda na quinta-feira, tudo de forma organizada e com uma pitada
de segredo – o nome do Judas escolhido só seria divulgado na última hora,
geralmente um político derrotado nas eleições, um vulto nacional execrado pela
sociedade ou mesmo um meliante que tivesse cometido um crime hediondo (coisa
difícil de suceder, naquele tempo)
O boneco era confeccionado de
pano, de corpo inteiro. O cuidado maior se concentrava no rosto do Judas,
que devia ter traços bem delineados para ajudar na identificação
da personalidade escolhida para a malhação.
Centenas de pessoas se
concentravam na praça onde, pendurado numa vara de mais de 4 metros de altura,
o corpo de Judas balançava, devidamente protegido por uma guarda de homens
determinados a evitar que alguém começasse a malhação antes do horário
estabelecido. O espetáculo ocupava praticamente toda a tarde, tempo
suficiente para que o boneco – já no chão - ficasse inteiramente desfigurado de
levar pontapés e do agarra-agarra dos meninos em busca dos bombons que eram
colocados na cabeça do Judas.
E o lugar se transformava
numa festa, em que não faltavam os vendedores de rolete, de algodão
japonês, de cavaco chinês, de amendoim e até de lustrosos e saborosos
pães-doces que a gente consumia com caldo de cana tirado na hora.
Pra fechar as comemorações,
assistia-se à missa do domingo de Páscoa e as famílias se reuniam para o
aguardado almoço, em que não podia faltar o velho vinho de mesa Imperial,
do qual até eu – menino enxerido - tomava um pouquinho, com que se
encerrava aquela semana de outros tempos.
*Escrito por Carlos Pereira
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