sábado, 14 de abril de 2012

Todos Descalços: Morreu Chinelo!


Todos Descalços: Morreu Chinelo!


1 berto de almeida
Não demorei muito, chegando à minha terra Jaguaribe, pois andava por aí curtindo a beleza dessa cidade em que a força da grana destrói mais do que ergue coisas belas, para receber a triste notícia de que Chinelo, meu personagem preferido, havia trocado de roupa – quase nenhuma mais ele usava! – e se mudado para outra cidade. Não me deram detalhes sobre a morte de Chinelo. Chinelo morreu, fim de papo.
Os detalhes da partida de Chinelo, esses que não me deram nem os procurei, não tinham quaisquer interesses. Um dia não iria mais acordar em sua casa sem teto e janelas, olhando as estrelas. Ele sabia. Trocaria de lugar. Dormiria para sempre no teto dela. Foi assim que num dia chuvoso e frio descreveu onde morava: “Moro numa casa em que não preciso abrir a janela para olhar as estrelas!”. Era a mais bela maneira de alguém dizer que morava na rua. Um poeta. Um poeta esfomeado. Tiro o chapéu e os meus chinelos para ele.
A morte de Chinelo, para mim, mesmo na certeza de que evitar seria impossível, foi inesperada. Chinelo nunca morreria, pensava. Pelo menos para quem se orientava no seu bairro pelas suas histórias de vida e caminhadas. Não morreu Chinelo, como suspeitava que um dia acontecesse, atrapalhando o tráfego e o trânsito. E, para não deixar de te uma morte poética, operário da vida, num sábado de Chico Buarque. Mas que morreu na contramão da vida, isso nunca duvidei. Chinelo viveu e sobreviveu na contramão da história dos nossos mendigos: nunca pediu!
Diferente dos outros dias, hoje senti mais forte a falta de Chinelo. Amanheci descalço. Sem esse Chinelo que agora descansa sob uma terra que tenho a certeza ter-lhe sido leve. Senti o frio dessa mesma terra nos meus pés descalços. Um frio que não reclamo, porque, comparado ao frio que por toda a vida - tinha 84 anos, um fato que os “matadores” dele não sabiam - Chinelo sentiu no corpo e na alma, era um banho de água quente numa manhã fria da grande São Paulo!
Passei há pouco por uma das “casas” de Chinelo – “A casa de Deus tem muitas moradas!” -, aquela que fica no cruzamento da Rua Vasco da Gama com a Rua 12 de Outubro, no meu bairro Jaguaribe. E vi com esses olhos que tantas coisas comem nesta vida que os moradores do local lavaram a cama onde Chinelo dormia. A calçada está limpinha e cheirosa. Agora estão felizes. Não verão mais aquela “figura abjeta” nem sentirão o odor acre daquele Chinelo velho.
Não mais precisarão esconder a indiferença e o desprezo por aquela figura que nunca falava nem pedia nada. Esperava, como me dissera um dia, apenas que percebessem sua existência, topassem nela. Sentia-se uma pedra no caminho. Ele pensava, disse-me outro dia. Existia. Esperava, como o Pedro Pedreiro do Chico Buarque esperava o trem, que alguns menos ex-crotos dividissem com ele o pão de cada dia que lhe era roubado. Agora, porém, aos pés de um Pai que sabe o que todo filho precisa, descalço ou com chinelo, ele de nada mais precisa. Todos perdoados. Embora saiba as sacanagens que fizeram com ele, e seguem fazendo com outros Chinelos e sem chinelos na vida.
No dia em que Chinelo foi embora sem pagar a conta do bar, devem ter escrito na sua Declaração de Óbito – De renda? Nem pensar! Pagou um triste imposto por Viver com dignidade! - que o morto não teve o nome identificado. Em seguida, passados os dias previstos na geladeira do IML sem que familiares reclamassem o corpo, esse mesmo corpo há muito morto, foi enterrado como indigente.
Não foi assim. Um sem vergonha de conhecer o morto – não sei dizer se Chinelo teria vergonha dele - contou um pouco de sua história para os responsáveis - nada de “urubus humanos” – pela limpeza dos Chinelos da vida. Se hoje Chinelo não tem uma cova, o que não posso afirmar, um nome Chinelo sempre teve: João Batista da Cruz, nascido em Forte Velho, Distrito de Santa Rita, e adotado por um bairro, o meu bairro Jaguaribe, como um de seus mais legítimos filhos.
O meu Chinelo era uma pedra no caminho de uma sociedade sacana que posa de limpinha e cheirosa, até que não se levantem os seus tapetes somente podridão. Mesmo não deixando um só rastro que envergonhe os milhares de pés sem chinelos que pisam de mansinho nessa mesma sociedade hipócrita, Chinelo passava despercebido no meio de uma multidão que corre apressada e vazia e triste em busca de um lugar sem futuro.
Triste. Confesso que assim fiquei com a mudança do meu personagem preferido para outra cidade. Mais triste ainda por não estar presente - – não teve o seu nome lembrado, como não quero o meu; nem virou notícia de jornal, como assim também não quero – na despedida desse sujeito que enquanto esteve por aqui desfilou entre mortos-vivos e muitos vivos, vivaldinos, com a dignidade de um mestre-sala. E que mestre-sala da vida foi o meu Chinelo!
Em tempo: Por muitos anos, no Rio de Janeiro, defendi o nome de Chinelo para Academia Brasileira de Letras.
Siti tibi terra levis...

Texto do irretocável Tião Lucena ( http://www.blogdotiaolucena.com.br/ )

3 comentários:

  1. grande mario, achei bacana a publicação. só uma ressalva que não diminui em nada o bacana que escrevi aí: o texto, como respeitosamente foi publicado, o nome do autor na lapela, é mesmo de 1berto de almeida, titular do blog Eu Plural (humbertodealmeida.com.br),que faço questão de convidar o amigo a visitar. a publicação, aí sim, foi feita blog de milhões de acessos do amigo tião lucena. putabraço.

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    1. Corrigindo, o texto é da inteligencia de Humberto de Almeida Júnior, mas foi publicado, também, no site do Tião Lucena.

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  2. Corrigindo, o texto é da inteligencia de Humberto de Almeida Júnior, mas foi publicado, também, no site do Tião Lucena.

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